Esta reportagem foi originalmente publicada por Lucia Azevedo no O Globo, em 05 de junho de 2024.
Na devastada Mata Atlântica, da qual restam apenas 12,4%, a visão de um filhote de anta passeando curioso pela floresta já seria um privilégio, pois a espécie quase desapareceu no bioma. Mas ganha status de símbolo porque comprova o valor de restauração. O filhote nasceu em áreas recuperadas no Estado do Rio, onde as antas haviam sido localmente extintas havia mais de um século.
As antas, os maiores mamíferos terrestres do Brasil, começaram a ser reintroduzidas na Reserva Ecológica Guapiaçu (Regua), em Cachoeiras de Macacu, em 2017, pelo projeto Refauna. Deu tão certo que se reproduziram. A Regua é parte de ações de restauração, cujo sucesso é medido na alta biodiversidade e em serviços ecossistêmicos, como produção de água, proteção de encostas e da fertilidade do solo e regulação do clima.
Enquanto o Congresso Nacional aprova medidas que ameaçam a existência da Mata Atlântica, como a MP 1.150, ambientalistas, cientistas, empresas, produtores rurais e voluntários se unem para restaurar e reconectar o bioma, hoje uma colcha de retalhos — somente 8,5% do que restou são fragmentos com mais de cem hectares. A Mata Atlântica está muito abaixo do limite mínimo aceitável para a manutenção de um bioma, que é de 30%.
A Regua é uma das 12 áreas incluídas no projeto No Caminho da Mata Atlântica: Restaurando Paisagens e Fortalecendo Cadeias Produtivas Locais no Mosaico Central Fluminense, que restaura 250 hectares em Cachoeiras de Macacu, Macaé, Nova Friburgo, Silva Jardim, Santa Maria Madalena e Trajano de Moraes.
O projeto é implementado pelo Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS) e pelo Caminho da Mata Atlântica (CMA). Enquanto o primeiro desenvolve estudos e instrumentos de restauração, o segundo começou como trilha de longo curso e hoje é iniciativa com foco em reconectar áreas naturais, para pessoas, plantas e animais, numa faixa de quatro mil quilômetros entre o Estado do Rio e o Rio Grande do Sul. No total, serão plantadas 63 mil mudas de 224 espécies nativas As mudas vêm de viveiros da região.
— É preciso restaurar não apenas o ambiente, mas a relação das pessoas com a natureza — afirma o biólogo André Lanna, do CMA, e especialista em fauna.
O programa integra outro maior. Trata-se do Projeto Biodiversidade e Mudanças Climáticas na Mata Atlântica, financiado pelo Banco de Desenvolvimento da Alemanha, com coordenação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e gestão do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio). A iniciativa atua na Bahia, no Paraná, no Rio e em São Paulo, com R$ 28 milhões para restaurar 3.092 hectares em 2023.
— É a maior iniciativa de restauração da Mata Atlântica em curso no Brasil. Abrange toda a cadeia da restauração, de projeto técnico com base em ciência à coleta de sementes e ao plantio, passando por mobilização e capacitação. A ideia é plantar uma semente para a recuperação do bioma mais devastado do Brasil — afirma o gerente geral do projeto, Rodolfo Cabral, do Funbio.
Também no Estado do Rio, a restauração é o objeto do recém-lançado edital do Programa Florestas do Amanhã. Gerido pelo Funbio, o programa destinará R$ 25 milhões a projetos em ltaboraí, Tanguá, Guapimirim, Magé, Cachoeiras de Macacu, Niterói, São Gonçalo, Maricá e Rio Bonito. Os recursos são parte do Fundo da Mata Atlântica do Estado do Rio. Desde 2009, o fundo já captou R$ 400 milhões, oriundos de pagamentos de compensação ambiental.
Projetos assim são as primeiras ações para recuperar parte do bioma onde o Brasil se desenvolveu e em cujo domínio vivem 72% de seus habitantes. O diretor executivo do IIS, Rafael Loyola, destaca que, só para cumprir o Código Florestal e recuperar áreas de preservação permanente e reservas legais, 4,74 milhões de hectares precisam ser restaurados na Mata Atlântica.
Pelas contas dos cientistas do IIS, a soma é de R$ 62 bilhões, ao longo de 20 anos. Os custos variam de R$ 600 a R$ 20 mil por hectare, dependendo de técnica, localização e estado de degradação.
— Parece muito, mas o orçamento do Ministério da Defesa, só em 2022, foi de R$ 116 bilhões. Investir em restauração é reduzir o risco de desastres, evitar crises hídricas, amenizar a temperatura e combater a extinção — diz Loyola.
Restaurar gera empregos, ressalta Ricardo Rodrigues, um dos cofundadores da re-green, empresa especializada em restauração ecológica, e professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (USP). Cálculos do grupo de Rodrigues mostram que a restauração gera 0,42 emprego direto por hectare.
— Como o Brasil tem, no mínimo, 12 milhões de hectares para restaurar para atender o Código Florestal, seriam criados de três milhões a quatro milhões de empregos — diz Rodrigues, cientista com o maior histórico de restauração de florestas nativas brasileiras (mais de 25 mil hectares).
A história de fragmentos de floresta em meio aos canaviais de São Paulo demonstra como reconectá-los é preciso. Segundo Rodrigues, estudo com 150 deles mostrou que, somados, preservavam biodiversidade superior até à de algumas unidades de conservação. Porém, cada um tinha poucas espécies, diferentes das dos demais:
— Para que essa biodiversidade se mantenha, temos que restaurar conexões. Precisamos de combate ao desmatamento e políticas públicas de incentivo à restauração.
Ele espera ver replicados exemplos como o de Iracemápolis, município paulista cujas florestas deram lugar a canaviais. Porém, áreas restauradas lá há 33 anos, hoje, têm tanto carbono no solo quanto florestas remanescentes.
— Lógico que uma floresta restaurada não será igual à primária. Mas serviços ecossistêmicos, como produção de água e de biomassa (captura de carbono), controle do clima e da erosão do solo, voltam a ser oferecidos. Isso sem falar na polinização — destaca Rodrigues.
O carbono virou commoditie, mas ele é mais atrativo e barato na Amazônia e não paga a conta sozinho. Soluções para viabilizar a restauração vêm de projetos como os da re-green, com silvicultura de árvores da Mata Atlântica. Em Eunápolis (BA), ela investe na produção de madeiras nativas, sobretudo, jequitibá-rosa e jatobá.
As duas espécies foram escolhidas porque se desenvolvem mais depressa, entre 20 e 25 anos podem ser abatidas. A título de comparação, a peroba leva 60 anos para chegar ao mesmo estágio. Não se trata de monocultura, mas de florestas com diversidade.
Rodrigues observa que há desafios para a restauração. Um deles é demonstrar perenidade. Não adianta espalhar sementes, distribuir mudas se não houver garantia de que a mata se desenvolverá e permanecerá. Selecionar áreas e técnicas com base em ciência é condição para dar certo.
O cientista ressalta a urgência de deter o desmatamento. Especulação imobiliária e obras de infraestrutura mal planejadas são os principais motores de devastação, acrescenta ele.
— Não precisa haver conflito entre ambiente e economia. Falta planejamento. Temos ciência para isso. E há urgência. Sem a Mata Atlântica, faltará água na região mais populosa do Brasil — enfatiza.
Foto: Divulgação/Funbio.
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