Três meses depois de ter dado início ao seu sonho de ser a primeira pessoa a percorrer os 4.000 quilômetros do Caminho da Mata Atlântica, a argentina Julieta Santamaria já atravessou o estado do Rio de Janeiro e chegou em São Paulo. Após superar uma jornada pelo litoral norte paulista, que terminou no município de Biritiba Mirim, no local conhecido como Pedra do Sapo, nossa aventureira dá início a um novo trecho do caminho, em direção ao Parque Estadual da Serra do Mar – Núcleo Bertioga.
Nesse trecho, a trilha segue um antigo caminho do comércio da época colonial que ligava o litoral até a planície, e que por décadas garantiu o escoamento das mercadorias até a capital paulista. Atualmente quem percorre esses caminhos são trilheiros, pesquisadores e, claro, animais nativos como a anta e a onça-parda. A passagem da nossa caminhante foi feita com apoio da Terra Brasilis, agência de turismo de Bertioga, junto com outros parceiros locais.
A caminhada começa com uma descida da Serra do Mar que passa pela majestosa Cachoeira do Elefante, com uma impressionante queda de 60 metros. Parada obrigatória – e um dos principais atrativos deste núcleo do parque estadual – é um convite irresistível para um mergulho refrescante ou simplesmente para apreciar o incrível spray d’água formado pelos ventos que batem no vale.
De lá, a rota segue até a famosa Casa de Pedra, uma construção histórica, de pelo menos 100 anos, onde aproveitamos para descansar para nosso próximo dia.
Uma boa noite de sono era necessária, pois o trecho seguinte pedia um começo logo nas primeiras horas do dia para enfrentar os seus 34 quilômetros de pura aventura e belíssimas paisagens pelo Parque Estadual da Restinga de Bertioga. Dessa vez, entretanto, o percurso seria feito não a pé, mas pelos rios Itapanhaú e Jaguareguava, com a ajuda de uma canoa canadense. Segundo a própria Juli, “um dos trechos mais lindos e mais diferenciados no Caminho da Mata Atlântica até agora”.
Nesses dois dias é possível entender a riqueza de ambiente que os parques no município de Bertioga, no litoral paulista, oferecem para seus visitantes. Desde suas trilhas no alto da serra até suas águas na planície costeira.
De volta à terra firme, Julieta foi em direção à histórica vila inglesa de Paranapiacaba e, como sempre, subir a Serra do Mar foi um desafio. Ainda mais quando se trata de trilhas selvagens, que hoje são frequentadas apenas por pesquisadores e animais, como mostram os vestígios encontrados no caminho.
O terceiro dia é marcado pela caminhada montanha acima. A subida, porém, é recompensada com a chegada no ponto mais alto do dia, a quase 1.000 metros de altitude, no Pico Jaguareguava, onde o horizonte revela belas vistas do planalto e da crista da serra. Dando nome à paisagem, é possível ver desde a belíssima Pedra da Boracéia, parte do Parque Estadual da Serra do Mar – Núcleo Padre Dória, por onde a Julieta já havia passado, até o Parque das Neblinas, Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) da Suzano Celulose, um verdadeiro berço selvagem nessa porção do planalto.
O caminho culmina num pernoite histórico, numa antiga ponte de pedras, datada do século passado, resquício das antigas fazendas que existiam na região.
De lá a trilha segue para capítulos mais recentes da história, onde está o famoso camping “Simplão de Tudo”, extremamente popular em Mogi das Cruzes entre os amantes da natureza e ponto seguinte de pernoite.
No dia seguinte, a jornada encontra outra rota histórica: o Caminho do Sal, que conecta Mogi das Cruzes aos municípios de Santo André e São Bernardo do Campo. Em uma época onde o sal era um dos melhores conservantes de alimentos, o percurso era o que garantia o abastecimento do recurso às cidades paulistas.
Durante o caminho, é impossível não pensar nas belezas e histórias escondidas ou pouco conhecidas da Mata Atlântica e o quão importante é fomentar o turismo e manter a memória da região ativa para que esse passado não se perca.
O percurso passa ainda por Cubatão até chegar na capital paulista, no Polo de Ecoturismo de São Paulo. Lá, Julieta foi calorosamente recebida pelos parceiros da RPPN Sítio Curucutu, a primeira reserva particular do município. A RPPN tem uma história inspiradora: o proprietário Jayme Vita Roso transformou o que seria um grande loteamento em um local de conservação dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) Capivari-Monos.
Além de ser um importante centro para educação ambiental, soltura de aves e cursos relacionados ao meio ambiente, a RPPN oferece uma hospedaria recém-reformada, que Julieta teve a chance de desfrutar. Durante sua estadia, a caminhante também teve longas e enriquecedoras conversas com a anfitriã, Ana Roso, trocando histórias e experiências, e encontrou um companheiro de jornada, Alex Gauthier – que também está percorrendo o Caminho da Mata Atlântica, porém de bicicleta.
Após uma noite revigorante na RPPN Sítio Curucutu, Julieta começou o dia seguinte explorando o Polo de Ecoturismo de São Paulo. A equipe da Bike do Polo levou-a para pedalar pelas estradinhas rurais da região da Barragem, conhecida por abrigar diversas comunidades indígenas que preservam a cultura dos povos originários. O pedal se estendeu até a histórica Estação Evangelista de Souza, que fazia parte da famosa Linha de Ferro Sorocabana e, há décadas, era um ponto de embarque para quem descia até o litoral paulista. Além de conhecer as várias cachoeiras e comunidades indígenas no extremo sul da capital paulista, Julieta teve a oportunidade de vivenciar a hospitalidade local, mediada pelo fotógrafo Ricardo Jacob, morador da região.
No dia seguinte, a caminhada seguiu por uma estradinha secular, utilizada durante a construção da Estação Evangelista de Souza, e que preserva vestígios da época, com partes do calçamento original de pedras ainda visíveis. O percurso entrou em trilhas de mata fechada, passando pelo parque SelvaSP e pela Fazenda Maravilha, propriedade famosa por suas cachoeiras. O caminho contou com a orientação da equipe da ACOPOLO e do Coletivo Bicho do Mato.
Ao final do trecho, Julieta se encontrou com a equipe da Agência Econautas e do Grupo Ecoturismo em Movimento no restaurante Estrada de Terra. Em boa companhia, a caminhante seguiu o percurso na direção de outro núcleo do Parque Estadual Serra do Mar (PESM), o Curucutu, carinhosamente conhecido como “Curuca”.
Ao chegar no núcleo, Julieta foi recebida por uma comitiva do parque, que incluiu o gestor, Marcelo Gonçalves, e diversos voluntários do Caminho. O apoio de Marcelo foi fundamental como intermediário junto à Fundação Florestal – órgão estadual responsável pelas unidades de conservação de SP – e Parquetur – atual concessionária – para realização da travessia no parque de Itutinga Pilões, assim como a estadia de Julieta no “Curuca”.
Infelizmente, o clima chuvoso cancelou a tão esperada Trilha do Pôr do Sol e a Trilha Circuito Bica-Mirante-Capelinha, atrativos populares e que estavam planejados para a tarde e o dia seguinte. Apesar do mau tempo, as atividades previstas foram substituídas por um merecido descanso no alojamento do Parque Estadual da Serra do Mar, transformando a situação em uma experiência única. À noite, durante um delicioso jantar preparado pelo monitor Israel Charles, seguido por uma roda de conversa, um casal de cachorros-do-mato apareceu na base do parque e, junto com os quero-queros residentes, proporcionou um espetáculo à parte.
No dia seguinte, o sol resolveu aparecer e após um café reforçado, era a hora de começar os próximos 45 km, mas não sem antes uma surpresa. O próximo trecho seria feito de bicicleta – uma notícia que nossa aventureira recebeu com felicidade e certo alívio. Mesmo sob duas rodas, o percurso durou cerca de 10 horas, incluindo paradas estratégicas de descanso e alimentação.
No total, foram dois ciclistas, acompanhados por dois carros de apoio e um batedor de moto que juntos atravessaram uma das áreas mais rurais do planalto, passando por vilarejos que pareciam congelados no tempo e interagindo com pessoas extremamente hospitaleiras. Assim, durante a realização do percurso, surgiram até mesmo novos pontos de apoio para o Caminho da Mata Atlântica.
Eles então cruzaram uma capital paulista diferente. Livre de prédios e trânsito, cercada de verde e paisagens bucólicas, até alcançarem o município de Embu-Guaçu. Embora o trajeto tenha sido de apenas 5 km, a hospitalidade se manteve presente. Pelo caminho, membros do grupo Amigos do Pedal 100 Rumo se juntaram a eles, acompanhando-os de bicicleta. Ao chegarem na cidade, foram calorosamente recebidos por Lukas Ubaldo, diretor de Turismo de Embu-Guaçu, e parte do grupo permaneceu por ali.
Após uma calorosa despedida, o grupo continuou a jornada, dessa vez com apenas Julieta Santamaria pedalando, Thiago Abdo na moto, e Braga Junior no carro de apoio. Eles percorreram o restante de Embu-Guaçu até São Lourenço da Serra, atravessando uma pitoresca mistura de Mata Atlântica e zona rural. No meio do caminho, para surpresa de todos, um ciclista que reconheceu Julieta Santamaria e Thiago das redes sociais se juntou ao grupo. Paulo Hessel passou a apoiar a equipe nos últimos quilômetros até chegar ao destino final: o Sítio Olaria.
Foi lá que conheceram o anfitrião Márcio Demazo, que apresentou a propriedade e a história por trás do nome. Ele falou sobre o processo artesanal de seus produtos, com destaque para a cervejaria localizada em um prédio em formato de igreja, fazendo alusão ao santo padroeiro da cidade, São Lourenço.
Após mais uma conversa entre os guias de turismo e o anfitrião, o encontro foi celebrado com um espumante de cambuci, fruto símbolo da Mata Atlântica, e com um feijão gordo, uma comida tradicionalmente mateira, preparada por Márcio.
No dia seguinte, Julieta seguiu rumo a Juquitiba com uma bike providenciada pela equipe da Secretaria de Turismo do município. Foram 25 km percorridos, com uma parada na Cachoeira do Monjolo para descanso e contemplação. Julieta foi acompanhada no trajeto pela equipe do Observatório do Turismo de Juquitiba e finalizou o deslocamento do dia na sede da organização, onde participou da inauguração e instalação de um protótipo de sinalização do Caminho da Mata Atlântica, desenvolvido pelo Observatório para o trecho da megatrilha em Juquitiba. Para espantar o frio da noite, Julieta contou com uma fogueira e quentão. E na manhã seguinte, partiu rumo ao Parque Estadual do Jurupará.
Saindo do Observatório do Turismo de Juquitiba ainda de bicicleta, Julieta fez sua primeira parada no Centro, onde visitou a Aldeia do Artesanato e foi presenteada pelo artesão local Marquinhos da Aldeia com um chaveiro personalizado entalhado em madeira. Julieta almoçou na cidade na companhia dos membros do Observatório e do artesão, dando continuidade à viagem com as operadoras de rafting de Juquitiba, às margens do Rio Juquiá, e fazendo uma parada no Mirante da Corredeira Pauleira, tradicional palco de competições e campeonatos de rafting e canoagem.
Julieta percorreu ainda toda a Estrada Turística Cachoeira do França, fazendo uma parada na Cachoeira da Grota e outra na barragem da represa. Foram cerca de 30 km trilhados no segundo dia da passagem pelo município de Juquitiba.
A aventura de Julieta pelo trecho do Planalto Paulista terminou na portaria do Parque Estadual do Jurupará, no limite entre Juquitiba e Ibiúna, com um total de 351 quilômetros a mais na conta do Caminho.
A argentina agora segue seu caminho pela unidade de conservação e entra no Núcleo de Planejamento e Articulação Local Vale do Ribeira, o maior do Caminho da Mata Atlântica e também o menos estruturado até o momento.
Sem dúvidas São Paulo está tornando a viagem mais enriquecedora, não só pela quantidade de mata contínua pela qual passo, senão também pelas pessoas que encontro no caminho. Essa jornada, que comecei sozinha, foi ganhando cada vez mais interesse das pessoas em me acompanhar, em fazer uma diferença, em marcar de certa forma, “eu quero ver o que você fala de nós no seu livro”, diziam, com brilhos nos olhos. E assim foi nos núcleos Padre Dória, Bertioga, Curucutu do PESM. Senti o carinho das pessoas, o jeito deles me receberem com tanto amor, de me abraçar e estar presentes.
Comecei em Bertioga acampando no Rio das Pedras, conheci a Cachoeira do Elefante e fizemos outro acampamento com a galera na “Casa da Pedra”, pro dia seguinte sair de canoa num percurso de 32 km atravessando o Rio Itapanhaú e o Rio Jaguareguava junto ao Rapha, da Terra Brasilis, e João, meu amigo que apareceu com muitas dicas sobre as trilhas de São Paulo no momento certo e que conheci depois de muitas conversas pelo whatsapp.
Foi simplesmente indescritível. Fiquei encantada, maravilhada, tive uma outra visão da Serra do Mar, dos manguezais, tive um show de guarás no final da remada. Foi um dia perfeito e no final dormimos no hostel Sairá-Beija-Flor, com direito a churrasco, pra sair no dia seguinte sentido Paranapiacaba. De novo um trecho de canoa, uma trilha puxada até os 1.000 m de altitude e uma vista preciosa desde a Pedra do Jaguareguava. Acampamos numa ponte no meio do nada! E no dia seguinte chegamos no camping cheios de carrapatos, dessa vez junto ao João, Luis e Kawan.
Logo a caminhada seguiu sentido Vila de Paranapiacaba, Cubatão, numa trilha linda junto ao Spiff que contou sobre a história de poluição da cidade.
Como nem tudo é lindo nessa caminhada, tive um percalço com dois cachorros que me morderam e acabei no hospital, tendo que tomar vacinas, com apoio da equipe da Fundação Florestal – Núcleo Itutinga Pilões para esses deslocamentos.
Quando cheguei na RPPN Sitio Curucutu, Ana me recebeu com muito amor e também conheci o Alex, que está percorrendo o CMA numa rota alternativa pra bicicleta. Junto a Bike do Polo, fizemos um percurso de bike. No dia seguinte continuei a caminhada com uma galera de Parelheiros, dois guias e um fotógrafo: Roberto, Jeff “Bicho do Mato” e Bruno. No primeiro dia dormimos no Selva SP, e no segundo cheguei no núcleo Curucutu onde tive o primeiro encontro com cachorros-do-mato, tendo a possibilidade de tirar uma selfie com eles! Que bichos fofos!
A galera fez uma janta especial: feijoada raiz. Até recebi de presente uma caneca do Marcelo, o gestor do parque, e a mulher dele, a Tânia. Só demos risada até dormir e no dia seguinte saímos num percurso de 50km, onde recebi de surpresa o apoio de uma bicicleta pra fazer esse trecho. Saímos com dois carros, uma moto e três bikes, foi junto o Braga, Marcelo, Thiago, Marcondes e Marivaldo.
Simplesmente estourou o pneu da bike que estava usando, e o Marivaldo cedeu a sua pra mim, podendo acabar esse trecho puxado por causa das subidas e descidas.
Finalmente chegamos na cidade de São Lourenço onde o restaurante Olaria nos recebeu com comida gostosa e cerveja, feita com uma receita especial que contém limão rosa, e acabei dormindo no espaço Ixixa, onde deram apoio. Na manhã seguinte apareceu a prefeitura de Juquitiba, e Pedro, do Observatório do Turismo. Eles também arrumaram uma bike da loja Tio Patinhas pra fazer esse percurso, onde foi possível conhecer o observatório – e colocamos um totem do CMA – , as cachoeiras e a cidade de Juquitiba, onde ganhei um presente de parte do Artesão Marquinhos. Continuei a viagem no sentido da portaria do Parque Estadual Jurupará, onde me despedi desse último apoio e fui recebida carinhosamente pelo pessoal do parque.
Como falei no começo, São Paulo tem apresentado muitas pessoas maravilhosas que fizeram minha passagem muito mais divertida e mais diversa. Junto a essas pessoas aprendo muito mais do que andando sozinha. É prazeroso demais ouvir suas histórias, aprender com seus conhecimentos, compartilhar acampamentos, trilhas, comidas, risadas. Nunca tenho certeza do que vou encontrar no próximo destino, mas sempre estou de coração aberto pro que vem, e sempre fico surpresa das boas experiências que tenho. E de também despertar nessas pessoas a vontade de ter novas experiências, seja me acompanhando num caminho que não conhecem ou correndo atrás de seus sonhos mais “loucos”.
Na caminhada, as conexões são as que mais ficam no coração, você pode conhecer um lugar lindo e ficar encantado, mas conhecer esses lugares em boa companhia faz esse lugar muito mais especial.
Foto: Ricardo Jacob.
Esta reportagem foi originalmente publicada no ((o))eco, em 13 de setembro de 2024.
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